
Chegou aos cinemas “No céu da pátria nesse instante”, novo documentário da premiada cineasta Sandra Kogut (Mutum, Três Verões), que se propõe a registrar não apenas a polarizada disputa eleitoral de 2022 entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, mas também o impacto desse momento histórico na vida de cidadãos comuns, fora do foco tradicional da política.

A obra já começa provocando: nos minutos iniciais, enquanto os créditos sobem, ouve-se a voz de uma mulher recusando participar do filme ao saber que a diretora seria “de esquerda”. “Ser contra o Bolsonaro é ser contra o Brasil”, afirma, sem ser identificada. A declaração dá o tom do que virá: um país dividido, marcado por tensões e por visões de mundo radicalmente diferentes.
Kogut, que começou o projeto antes mesmo do início da campanha oficial, conta que sabia que os meses seguintes seriam decisivos:
“Aconteça o que acontecer, é muito importante. Muito definidor do que vem depois no nosso futuro”, afirma em entrevista ao Estadão.
Protagonistas do cotidiano
O diferencial do documentário está na escolha dos personagens. Ao invés de políticos ou figuras públicas, Sandra volta sua câmera para pessoas comuns que orbitam o processo político, mas raramente ganham destaque. Entre eles, estão:
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Um caminhoneiro do Paraná,
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Um vendedor de toalhas com rostos dos candidatos na Avenida Paulista,
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Uma jovem militante que atua em campanhas políticas no Rio de Janeiro,
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E uma funcionária da Justiça Eleitoral no Pará.
A única figura mais conhecida no filme é Antonia Pellegrino, roteirista e mulher do ex-deputado e então candidato ao governo do Rio, Marcelo Freixo. Sandra esclarece: “Ela está ali como uma pessoa que está ao lado do candidato, vivendo desse lugar.”
Desafios na abordagem da direita
Encontrar personagens alinhados à direita foi um dos maiores desafios da diretora, como revela o trecho inicial do filme. Houve resistência e muitas recusas. A solução foi apostar na transparência e no diálogo.
“Todo mundo sempre soube o que eu pensava. E eu também sempre falei: ‘Não estou aqui para te convencer de nada. Quero entender como você pensa’”, diz Sandra.
O processo exigiu também uma logística diferenciada. Para cobrir diferentes regiões do país simultaneamente, a diretora treinou equipes locais, inclusive pessoas que nunca haviam trabalhado com cinema. Em Marajó (PA), por exemplo, um funcionário da prefeitura foi preparado para captar imagens com a sensibilidade desejada pelo filme.
“Isso foi criando algo muito orgânico: pessoas em lugares diferentes pensando no filme”, destaca.
Registros históricos e momentos de tensão
Essa rede de colaboradores permitiu registrar eventos cruciais daquele período. Entre eles, estão:
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As blitze da Polícia Rodoviária Federal em rodovias durante o segundo turno da eleição;
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E, sobretudo, o 8 de Janeiro de 2023, quando os prédios da Praça dos Três Poderes foram invadidos e depredados em Brasília.
Kogut lembra que estava em casa, finalmente descansando, quando recebeu a notícia:
“Até que enfim um domingo tranquilo. Mas o roteirista do Brasil não deixa ninguém descansar.”

Um fotógrafo ligado à produção decidiu se infiltrar na multidão, vestido com uma camisa verde e amarela, e conseguiu imagens de forte impacto.
“Acho que somos os únicos que fizemos imagens de cinema daquilo ali. As imagens são muito impressionantes e têm valor histórico”, diz a diretora.
A equipe também atuou em um acampamento bolsonarista em Brasília, onde um fotógrafo chegou a engolir o cartão de memória da câmera para evitar que o material fosse confiscado. Apesar do susto, ele está bem, segundo Sandra.
Outro momento de tensão envolveu tentativas frustradas de filmagem em um colégio eleitoral no Rio de Janeiro, onde a equipe, mesmo autorizada oficialmente, foi intimidada por milicianos locais.
“Quando se cria uma zona cinzenta, onde o Estado não pode exercer plenamente seu papel, abre-se espaço para um poder paralelo”, alerta a cineasta.
Um país dividido sob o mesmo céu
A polarização política que marcou o Brasil em 2022 é uma presença constante no documentário. Em uma das cenas finais, o caminhoneiro paranaense diz à diretora que parece que eles vivem realidades completamente diferentes.
Sandra concorda:
“É o grande desafio. Temos que reconstruir algum tipo de terreno comum que se perdeu. E o único caminho que vejo é o caminho humano, das relações humanas – de enxergar as pessoas por trás daquilo.”
O nome do filme, aliás, remete a essa ideia. Tirado de um verso do Hino Nacional, “No céu da pátria nesse instante” fala sobre esse tempo fragmentado que todos vivemos juntos, mesmo em lados opostos.
“As manchetes eram tão impressionantes que a gente esquecia das anteriores. Me parecia urgente criar um fio condutor”, diz Sandra. “E se existe algo em comum, é que todos estamos sob o mesmo céu.”
