
Nas regiões mais remotas do Mato Grosso do Sul, pequenos produtores rurais transformam o trabalho diário em tradição e sabor. É a mulher que molda, com as próprias mãos, até dez queijos por dia. O quilombola que prepara geléias, pimentas e compotas com receitas herdadas de gerações. O criador de frango e ovos caipiras, que respeita o tempo da natureza. Mas todos eles têm algo em comum: o desafio de levar seus produtos até as feiras e mercados, com a dignidade de um selo que garanta a origem artesanal e a qualidade do que produzem.
Produção rural cresce em diversas regiões de Mato Grosso do Sul - (Foto: Bruno Rezende)Agora, com a implementação do Selo da Agricultura Familiar, surge a perspectiva de mais visibilidade e respeito a essa produção. A iniciativa irá certificar produtos artesanais e de pequeno porte, oferecendo a esses produtores uma identidade reconhecida, permitindo sua comercialização em todo o estado, com credibilidade e segurança.
“O selo imprime a qualidade e a identidade dos alimentos produzidos pela agricultura familiar, mas daqueles realmente pequeninos, produtos artesanais, que não
O secretário-executivo da Agricultura Familiar, Humberto de Melo - (Foto: Arquivo)se encaixam nos programas voltados para agroindústrias maiores”, explica o secretário-executivo de Agricultura Familiar, Humberto de Melo.“É voltado para quem está começando, para a mulher que produz dez queijos por dia, para o agricultor que faz isso de forma quase manual. O diferencial está em reconhecer esses produtos como legítimos e valiosos”, complementa.
A legislação que viabiliza o selo estabelece um teto de até 7 mil UFERMS de faturamento anual — aproximadamente R$ 4 mil mensais — o que aproxima a certificação de um modelo similar ao MEI. Segundo Humberto, mais do que um selo de qualidade, se trata de um símbolo de pertencimento.
“Queremos mostrar para a sociedade que aquele produto, que está na feira ou na gôndola do supermercado, vem da agricultura familiar. Que foi feito com cuidado, por alguém que vive da terra, não por uma grande indústria”, detalha.
Embora represente a maioria das propriedades rurais de Mato Grosso do Sul, a agricultura familiar ocupa uma parcela reduzida do território produtivo: apenas 4% da área total, mesmo estando presente em 61% dos estabelecimentos agropecuários do Estado. Esse cenário foi revelado por uma pesquisa inédita divulgada em março deste ano e conduzida pela Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação (Semadesc), com o apoio da Secretaria-Executiva de Agricultura Familiar (Seaf) e da Agraer, em parceria com o Sebrae/MS.
O levantamento mostra que a agricultura familiar sul-mato-grossense abrange mais de 41 mil pequenas propriedades espalhadas pelo Estado. Para Davi Lourenço, coordenador técnico da SEAF, a classificação dos selos também é um diferencial importante para preservar a identidade dos povos e territórios.

“Cada selo terá um recorte específico: indígenas, quilombolas, agroecológicos, urbanos e periurbanos. Isso dá mais visibilidade à origem de cada produto, conecta o consumidor à história do produtor. O selo também trará exigências, pois queremos uma produção sustentável e legalizada. Será preciso, por exemplo, garantir que o produtor tenha uma estrutura mínima e esteja em dia com as obrigações ambientais”.
A escola onde se planta o futuro - Essa conexão entre campo, sustentabilidade e identidade se fortalece também na educação. No distrito de Rochedinho, em Campo Grande, a Escola Agrícola Barão do Rio Branco tem sido referência nesse processo. Desde 2015, a unidade deixou de ser apenas uma escola rural para se tornar, de fato, um espaço pertencente ao campo, onde a aprendizagem se dá com os pés na terra e as mãos na massa. Desse jeito, na prática.
Projeto da Escola Barão do Rio Branco atende todos os estudantes. Um dos destaques é a piscicultura - (Foto: Denilson Siqueira)“A ideia era transformar a escola em um ambiente educacional que não estivesse apenas no meio rural, mas que fizesse parte desse meio, que se tornasse referência em práticas agropecuárias. Trabalhamos para que o aluno tenha orgulho de ser alguém do campo, que valorize sua origem e a cultura da sua comunidade”, afirma o diretor escolar Francisley Galdino.
Mais do que aprender a plantar, os alunos são introduzidos a todas as etapas do ciclo produtivo, do solo à comercialização. “Eles preparam o solo, cuidam das plantas, colhem, processam a matéria-prima e ainda aprendem a calcular custos e pensar no escoamento. Isso desenvolve o senso de responsabilidade, melhora a autoestima e abre possibilidades que antes eles nem enxergavam. Muitos passam a contribuir com a economia da própria casa”, detalha.
Todo o excedente da produção é comercializado no Empório Barão, ambiente de aprendizagem onde os alunos praticam o empreendedorismo.
A Escola Barão do Rio Branco continua sendo destaque quando o assunto aprendizado com produção rural - (Foto: Denilson Siqueira)“É um processo pedagógico, sem fins lucrativos. O dinheiro arrecadado volta para a escola, para investir em mais estrutura e equipamentos. Já temos casos de alunos que melhoraram a renda familiar aplicando em casa o que aprenderam aqui. Isso transforma a realidade social e econômica deles”, revela.
A agricultura familiar também se integra a um ecossistema mais amplo, conectando o campo à cidade. O presidente do Sindicato Rural de Campo Grande, Rochedo e Corguinho (SRCG), Eduardo Monreal, destaca como a entidade atende a todos os perfis de produtores.
"Na verdade, acreditamos — assim como boa parte do Brasil — no espírito empreendedor do nosso povo. O agronegócio é um setor que abrange a todos: pequenos, médios e grandes produtores. Muitas vezes, o pequeno produtor é familiar, mas isso não significa que ele tenha pouca relevância. Pelo contrário, ele gera muitos empregos e possui um faturamento expressivo. O Sindicato Rural atende a todos esses perfis", revela.
O presidente do SRCG, Eduardo Monreal - (Foto: Lorena Sone)Monreal afirma ainda que não faz sentido segmentar ou dividir os produtores, pois todos enfrentam os mesmos desafios. "As variações climáticas, as oscilações de preço e as exigências do mercado. Seja o produtor de uma pequena propriedade que cria galinhas para vender ovos, ele também precisa garantir que o produto final seja limpo, bonito e bem apresentado — exatamente como o consumidor deseja", diz.
Eduardo também ressalta os avanços tecnológicos que têm impulsionado o setor, como o uso de drones, maquinários modernos e novas variedades agrícolas desenvolvidas por institutos como a Embrapa e a Fundação Chapadão.
“Hoje o agro exige tecnologia e profissionais qualificados. Por isso investimos em formação por meio do Senar, com cursos profissionalizantes em diversas áreas como silvicultura, pecuária de leite e corte. O aluno sai com base teórica e aprende a prática, tornando-se um profissional completo”.
O impacto da agricultura familiar não é apenas econômico. Ele é humano, social, ambiental e cultural. Quando políticas públicas, como o selo de origem, encontram respaldo em experiências educacionais transformadoras e no fortalecimento das cadeias produtivas locais, o resultado é um ciclo de desenvolvimento que toca todos os lados da vida rural.
“Estamos falando de inclusão social. De segurança alimentar. De tirar pessoas da dependência de programas de transferência de renda e colocá-las como protagonistas da própria história”, reforça Humberto de Melo. “É um selo, sim, mas é também uma oportunidade para que o pequeno produtor cresça, se estruture e enxergue sua propriedade com outros olhos”.
Mais que uma política pública, a valorização da agricultura familiar representa um compromisso com o futuro sustentável de Mato Grosso do Sul. Ao certificar produtos, fortalecer a identidade cultural dos povos do campo e integrar ensino, inovação e economia local, o Estado constrói uma base sólida para transformar a realidade de milhares de famílias.

