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ARTIGO

O microempreendedor do aplicativo e o terraplanismo

Certamente há sérias consequências, do ponto de vista psíquico e social, desse modelo que isola, que acirra a competição, que rompe laços de sociabilidade, que coloca nas costas do trabalhador todo o peso do fracasso

13 dezembro 2019 - 12h02Por Vanessa Patriota da Fonseca
Vanessa Patriota da Fonseca - Procuradora do Trabalho e membra-fundadora do Transforma MP
Vanessa Patriota da Fonseca - Procuradora do Trabalho e membra-fundadora do Transforma MP - Foto: Divulgação
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Ensinam Dardot e Laval que o neoliberalismo tem que ser entendido como uma racionalidade; algo que organiza tanto a ação dos governantes quanto a dos governados; uma lógica que rege as relações de poder e as maneiras de governar e que é capaz de conferir sentido às práticas e limitar o horizonte de reações ao sistema, pois nada além dele possui validade. A receita é forçar governantes à austeridade e governados ao domínio de si sob a pressão da competição.

Nesse contexto, houve um processo de transformação da empresa como modelo de subjetivação tanto do Estado quanto dos indivíduos. Por meio de diferentes técnicas de gestão e do conceito de governança, a racionalidade neoliberal remodelou o funcionamento das empresas. Avaliações de desempenho passaram a ser utilizadas para medir a eficácia de equipes e indivíduos e estimular a competição entre eles como forma de aumentar a produção.

A subjetivação neoliberal, no plano individual, incorporou a forma de empresa-de-si-mesmo e as pessoas passaram a buscar a sua valorização de olho na concorrência com os demais Eus/SA. Dentro dessa lógica de captura da subjetividade do trabalhador pelas empresas, é importante que ele se identifique com ela, que "vista a camisa", que se torne um "parceiro", a fim de esmorecer a luta capital x trabalho, pois, afinal, a luta passou a ser entre os diferentes EUs/SA pela sobrevivência.

No mesmo sentido, a construção do engodo do empreendedorismo e sua incorporação tanto no discurso de suas vítimas diretas, os trabalhadores pseudoautônomos, quanto no dos consumidores que se beneficiam da exploração do trabalho humano sob o fundamento do baixo custo do serviço, é realizada meticulosamente por profissionais de marketing e de psicologia. Busca-se moldar a opinião pública com apelo a emoções das massas mediante o emprego de termos como: colaborador, microempreendedor, economia colaborativa, economia de compartilhamento, espírito empresarial, criatividade, oportunidade etc.

Para os porta-vozes do empreendedorismo importa que esse discurso cumpra o papel de intensificar o vínculo simbólico que une uma legião de explorados às empresas que os exploram; que essa legião se sinta devedora e, por isso mesmo, fiel a quem lhes deu oportunidade de ser um empreendedor. Certamente há sérias consequências, do ponto de vista psíquico e social, desse modelo que isola, que acirra a competição, que rompe laços de sociabilidade, que coloca nas costas do trabalhador todo o peso do fracasso.

Se a falácia da autonomia e do empreendedorismo se alastrou com o projeto neoliberal, ela teve um outro boom com a Revolução Digital e a contratação de trabalhadores para prestação de serviços a empresas de diferentes ramos, por meio de plataformas virtuais, em especial, no trabalho on-demand por aplicativos – aquele em que atividades tradicionais, como as de transporte, delivery e limpeza, são possibilitadas por meio de aplicativos que conectam solicitante e fornecedor do serviço no momento da demanda.

Exemplos desse modelo de trabalho são os oferecidos pela Uber, transporte de pessoas; Uber eats, entrega de refeições; Loggi, entrega de objetos; Parafuzo, serviços de limpeza em residências e empresas; DogHero, passeio com cães; Make You, cabeleireiro, manicure e maquiagem, entre tantos outros.

Como esclarecem Oitaven, Carelli e Casagrande, no trabalho on-demand por aplicativo a organização, e até mesmo o controle do trabalho, é realizado por programação algorítmica. Assim, a parcela aparente de autonomia concedida ao trabalhador na realização do serviço é sobrepujada pela estipulação de comandos preordenados pelo programador da plataforma que faz com que o trabalhador apenas reaja, em tempo real, à emissão de tais comandos para que os objetivos pretendidos sejam alcançados. A ausência de ordens pessoais emitidas pelo empregador, aliada à tomada de decisão quanto a trabalhar ou não, causa a ilusão de que a autonomia se faz presente, quando, na realidade, ela foi soterrada pela programação existente e pelo dever do trabalhador de se manter mobilizado para reagir aos comandos. O mundo do trabalho, assim, depara-se com a subordinação cibernética.

O algoritmo, uma espécie de entidade que tudo controla, movimenta as peças humanas de modo a que atendam aos objetivos do capital. Hipnotiza o trabalhador ao fazê-lo sentir-se em um game, com várias etapas a superar a fim de alcançar o objetivo proposto e chegar à vitória final. E, assim, ele é forçado, sem que perceba, a se manter conectado.

A ausência de autonomia dos trabalhadores é evidenciada quando se observa que o preço do serviço é estabelecido unilateralmente pela empresa detentora do aplicativo. Que autonomia tem um trabalhador que não pode dizer quanto vale o seu serviço? E esse preço é tão baixo que o trabalhador precisa se manter eternamente conectado para auferir ganho suficiente para sobreviver.

As empresas de delivery controlam os trabalhadores por meio de GPS, que segue seus passos em tempo real, ao passo que os algoritmos por elas programados controlam o cumprimento de metas que podem levar à bonificação por redução de tempo de entrega. Os entregadores, via de regra, não têm conhecimento do local da entrega até a sua aceitação. Se, porém, aceitam o chamado e depois o cancelam, podem ser punidos, pois as empresas se reservam o direito de suspender ou descadastrar o "parceiro" que fica muito tempo inativo ou que não age conforme suas regras. Ao avaliarem os trabalhadores, os clientes fornecem à empresa informações sobre a observância ou não de tais condutas. A avaliação, portanto, é intensificada, na medida em que pode ser realizada por todos os clientes, levando o trabalhador a estar sempre atento à consecução dos objetivos programados.

As condições de trabalho dos entregadores são lastimáveis. Eles aguardam o chamado do aplicativo em calçadas públicas ou em praças, muitos dormem nas ruas algumas poucas horas de sono, arriscam-se no trânsito dirigindo às pressas e fazendo ultrapassagens perigosas para cumprir os prazos de entrega estabelecidos, não gozam de folgas semanais e férias remuneradas e estão sujeitos à elevada carga de estresse.

As empresas de entrega por aplicativo também descumprem o disposto na Lei nº 12.009/2009 que estabelece, entre outros, que as motos devem possuir mata-cachorro, antena corta-pipa e inspeção semestral (art. 139-A, incisos II, III e IV). Sem conceder equipamentos de segurança e determinando tempo máximo de entrega a cumprir, parecem brincar com a vida humana, inclusive ao concederem bônus para quem reduz o tempo de entrega e se arrisca mais. Não é por outra razão que o número de mortes de motociclistas no trânsito, na cidade de São Paulo, sofreu um aumento de 17% de 2017 para 2018, ocorrendo, em média, uma morte a mais por dia.

Apesar de manter o controle do trabalho, todavia, essas empresas não reconhecem os vínculos de emprego. Elas criaram uma aura de novidade, autodenominando-se empresas de tecnologia, que facilitam o empreendedorismo, para se esquivarem de todas as obrigações trabalhistas. O discurso, igualmente talhado por profissionais de marketing, é absorvido pela sociedade e pelo Estado e as empresas são transformadas em benfeitoras que impulsionam o mercado de trabalho.

Mas os serviços ofertados não são novidade: transporte, limpeza, entrega, manicure etc. A relação entre empresa e trabalhador é a mesma: o contratante seleciona e treina a mão de obra, estabelece os procedimentos de trabalho, fixa a remuneração, tem liberdade para rescindir unilateralmente o contrato, o trabalho é realizado externamente – como sempre pôde ser. A diferença é que, se antes a empresa era contatada por um cliente pessoalmente, por telefone ou por email, hoje ela realiza o contato por meio de um aplicativo. Se antes a empresa repassava a ordem de serviço para o trabalhador diretamente, e esse trabalhador estava aguardando o chamado no seu estabelecimento, hoje a empresa transmite a ordem por meio do mesmo aplicativo ao trabalhador que se encontra fora do estabelecimento, mas dentro de uma área geográfica por ela delimitada. Antes o empregado concluía o serviço e devolvia a ordem com o ateste do cliente. Hoje, o trabalhador realiza a entrega e informa a conclusão do serviço pelo aplicativo.

Tudo seria igual não fosse pela existência de um aplicativo para fazer a conexão entre as partes envolvidas. Ora, o engenheiro de uma indústria de construção civil deixou de ser empregado da empresa quando passou a receber ordens por meio de e-mails? O gerente do banco deixou de ser empregado quando passou a receber instruções via sistema informatizado? O publicitário em teletrabalho deixou de ser empregado quando passou a receber instruções por telefone?

O controle do trabalho nunca foi tão fácil e tão intenso, pois está tudo registrado na plataforma: a data de cadastramento do trabalhador, a hora de conexão e desconexão, a rota, o tempo, o valor recebido. A farsa do microempreendedor precisa ser desvelada! Terra plana, peixe inteligente, Jesus na goiabeira, nazismo de esquerda, Amazônia não pega fogo, kit gay, microempreendedor do aplicativo. Tudo junto e misturado. Pós-verdade.

No trabalho on-demand por aplicativo é possível, facilmente, vislumbrar-se a existência da relação de emprego pela presença dos seus elementos fático-jurídicos, inclusive a pessoalidade e a subordinação, pois trabalhador não pode se fazer substituir por outra pessoa e o controle sobre ele é exercido por meio de programação algorítmica. No caso do Brasil, o parágrafo único do art. 6º da CLT alarga a concepção da subordinação para abarcar a subordinação cibernética uma vez que "os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio". Resta, portanto, cobrar a responsabilidade das empresas pela criação do engodo e pelo consequente vilipêndio dos direitos trabalhistas.

Nesse sentido, cumpre destacar a brilhante sentença proferida nos autos do Processo nº 1001058-88.2018.5.02.0008, referente à Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público do Trabalho em face da Loggi Tecnologia Ltda, que declarou a existência de relação de emprego entre a ré e todos os condutores profissionais que prestam serviços de transporte de mercadoria através de suas plataformas digitais.

Decisões reconhecendo o vínculo de emprego no trabalho on-demand por aplicativo estão se espalhando pelo mundo: França, Espanha, Inglaterra e Estados Unidos são alguns exemplos de países onde a jurisprudência já avançou no sentido de reconhecer o vínculo de emprego entre trabalhadores e empresas de aplicativos.

Mas a saída para a crise pela qual passa o mundo do trabalho não se encontra no âmbito do Poder Judiciário. Ela pressupõe a busca de alternativas ao modelo neoliberal que acarretou, com o advento da Revolução Digital, a intensificação, numa ordem de grandeza assustadora, da precarização das relações de trabalho, embarcando os trabalhadores em uma espécie de máquina do tempo que os levou a um passado longínquo, quando os trabalhadores compareciam à porta da fábrica no aguardo de serviço, aceitando o que lhes era concedido, sem limites à exploração.


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